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Na última vez que o entrevistei vi que seus olhos já estavam
indiferentes ao que se passava à sua volta; ou melhor, à nossa
volta; ou ainda, à volta de qualquer coisa na vida.
Pra falar a verdade, ele mastigava minhas perguntas e em seguida
cuspia as respostas, secamente. Como se as novidades estivessem por
ali há uns dois mil, dois mil e quinhentos anos, no mínimo.
Pedi que me descrevesse sua atual condição de vida. Em resposta
lançou-me um olhar perdido e deixou escapar que não ia continuar
falando sobre aquilo que todos gostariam de ouvir. Depois disse, alto
e bom som: "É isso que esperam? É isso que não terão..."
Senti que o vazio ameaçava tomar conta do espaço que ocupávamos.
Esse mesmo vazio poderia preencher o assoalho de tábuas enegrecidas,
depois contaminaria os afrescos, envolveria os vitrais, sairia porta
afora, infectando o átrio, avançando sobre o cenário de falsas
montanhas e atmosferas nebulosas.
Providencial foi ouvi-lo dizer: "Cuidado! Tudo o que escrever
aí nesse caderninho pode virar uma ou várias estórias - pistas,
pegadas - por menos que uma frase se encaixe na outra."
Sorriu, e através desse sorriso percebi sua ironia: as frases
escritas, os sons gravados na memória, as imagens retidas como
fantasmas, nada iria se encaixar, a ponto de tecer uma estória,
qualquer estória, por mais que eu tentasse.
Perguntei qual a razão maior de todos os lamentos, e ele se referiu
à perda de tempo, com um certo fastio. Pelo que entendi, era uma
perda de tempo dividir esse mesmo tempo em pedaços desprezíveis,
pequenos fragmentos, que passavam a ter uma vida independente do
tempo maior, o indivisível, e que por si só abriam caminho para a
falsa eternidade. Tentei perguntar se existiria alguma "eternidade
verdadeira", mas um simples bocejo me desencorajou.
Em seguida, voltou a falar sobre o rio, o tal que nunca é o mesmo,
embora idêntico a tantos outros. Aí residiria um dos caminhos para
escapar de armadilhas perigosas e recalcitrantes: aceitar que algo
pode ser igual e diverso ao mesmo tempo. A ilusão é quem muda a
essência e dá origem ao vício - o vício de estar sempre
imaginando opostos, supervalorizando diferenças, contrapondo,
medindo, avaliando. "O próximo passo é julgar, escolher ao
lado de quem você quer se esconder neste exato momento", disse
ele.
Queria saber se a solidão não lhe era pesada, se não se sentia
mal assim tão isolado, mas pelo olhar cheio de vida que me lançou
concluí que sozinho estava eu, não ele. Se naquele momento surgisse
um espelho entre nós dois, era bem capaz de reconhecer que, não só
a solidão, mas também a tristeza, o fastio, o desinteresse, não
passavam de projeções que eu mesmo enviava e recebia de volta, a
título de resposta.
Espontaneamente, criticou o egocentrismo - eterno, incurável. Disse
que somos formigas com complexo de elefantes.
"Todos nós? - perguntei - Seus filhos?"
Foi o sinal para que desandasse a enaltecer mãos, dentes, palavras,
suspiros, impulsos, pecados, magias...
Com um simples gesto, descortinou o horizonte. Coloriu o céu e a
terra, cada canto do quadro com sua própria tonalidade - exclusiva,
mutante.
Passei tanto tempo admirando as cores que não cheguei a perceber
que ele se fora. Acordei ali mesmo, à sombra de uma nuvem branca
encobrindo o sol, disposto a escrever no caderninho suas últimas
palavras, que um dia ainda irei lembrar.