sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O Saco de Pancadas


Como a vida andava de lado e não havia nada a fazer, resolveu não fazer nada na porta da igreja. Ficou uns trinta, quarenta minutos sentado no último degrau da escadaria, aquele que antecede a calçada ou o passeio, como gostam alguns. Reparou que as pessoas não reparavam, ninguém dava a mínima se ele estava ali ou deixava de estar, isso até que uma jovem e robusta senhora, bem apanhada, com uns cento e trinta quilos mais ou menos, tropeçou na sua pobre perna esticadinha. A mulher se revoltou, virou bicho, gritou meia-dúzia de palavrões cabeludos, apesar do local inapropriado. Bufou, soltou fogo pelas ventas, xingou, disse que ele nem sabia pedir esmolas como qualquer mendigo que se preze. Aí, sem que ele a provocasse, meteu-lhe um pontapé na perna agora encolhida. Doeu que foi o cão... Mas sabe como é, não havia nada a fazer. A mulher foi embora e ele continuou ali sentado esfregando a coxa roxa, pensando que nem esmolas sabia pedir. Meia-hora depois a mulher voltou. Ele se assustou, chegou a pensar em correr, mas a mulher abriu a carteira e entregou para ele uma nota de cinco: "Fiquei com pena, viu... O padre disse que não é pra ser mau com os inúteis como você. Pegue a sua esmola antes que eu me arrependa, seu traste". 
Ele pegou, agradeceu, pensou em mostrar a mancha roxa pra ver se descolava uma graninha extra, mas para isso ia ter que abaixar as calças em público e, sabe como é, a mulher podia não gostar.



Muitos anos depois, ele ainda se lembra com carinho dessa primeira e salvadora experiência. Já está rico, proprietário de imóveis, contas no exterior, carros de luxo, mulheres. Bem, é melhor voltar ao tempo em que teve a ideia de ganhar a vida com a ira alheia.   




Fn produções apresenta:

O SACO DE PANCADAS



Manuel dos Anjos, o popular "Mané deixa-que-eu-chuto", era vítima de um defeito congênito que o fazia capengar além da conta, mas como passava a maior parte do tempo sentado, quase ninguém dava importância à sua deficiência. Segurando a nota de cinco, volta para casa e começa a filosofar com seus botões e zíperes: "Se tem gente que ganha dinheiro socando os outros, por que diabos não posso eu ganhar a vida sendo socado?" 

Em pouco tempo a notícia se espalhou. Havia um louco na cidade oferecendo a cara a tapas, por uns míseros "cinco ou dez real", dependendo do tamanho da porrada. 
No início, os pessimistas de sempre acharam que aquilo não ia dar certo: "Vejam só... Alguém vai pagar pra bater no perneta?"; "Se eu quisesse bater, surrava sem pagar mesmo."
Mas  com o passar dos dias, e a vida andando de lado pra muita gente, começaram a aparecer os primeiros fregueses. Primeiro foi o motorista de táxi que acabara de levar uma multa no trânsito, como sempre injusta; depois foi a vez da mulher que tomou uns tapas do marido e resolveu descontar em alguém, já que o dito marido era lutador de karatê; mais tarde veio o dono da padaria, obrigado a fechar as portas por culpa do supermercado; em seguida apareceu o dono do supermercado, prestes a vender a rede para uma transnacional... 
Mané concluiu que o negócio tinha futuro. Criou uma tabela: Soco  ou  Pontapé:  R$ 5,00 a unidade; Cascudo: R$ 3,00; Sopapo: R$ 7,00 ... até chegar à surra completa, com direito inclusive a chute nos bagos, esta saía por módicos R$ 150,00.   
Contam que Manuel dos Anjos, o popular "deixa-que-eu-chuto", era homem de extraordinária resistência física e proverbial autocontrole, pois nunca chegou a desmaiar ou a ensaiar qualquer tipo de represália contra seus clientes. 



Com o passar do tempo, Manuel dos Anjos passou a receber visitas de pessoas importantes, tais como o senador Peralta e o desembargador Justiniano, os dois interessados em contratar os serviços da "Deixa-Que-Eu-Chuto Empreendimentos Pugilísticos" para salvar o futuro de seus filhos, metidos em brigas de gangues em Brasília. Acreditavam eles que se os "meninos" tivessem um modo legal de extravazar a agressividade largariam mão das quadrilhas clandestinas e deixariam de incinerar mendigos e silvícolas aculturados, o único perigo era o "deixa-que-eu-chuto" bater as botas. 

Mané os tranquilizou: "Quanto a isso, não se preocupem... Estou acostumado a coisas muito piores. Mesmo assim, caso venha a falecer, nossa empresa está organizada para disponibilizar um substituto à altura, de modo que os 'meninos' não ficarão desamparados."
Pra encurtar a história, depois desse "servicinho", Mané passou quinze dias na UTI e mais dois meses internado no melhor hospital da cidade, com tudo pago pelos "clientes", que ainda gratificaram regiamente a fidelidade e o completo sigilo da empresa. 



O tempo foi passando e Mané dos Anjos era cada vez mais requisitado. Com isso, inflacionou a tabela e terceirizou os serviços. "Apanhar" passou a ser uma profissão bem remunerada e atraente. Tanto assim que novas empresas surgiram no rastro da "Deixa-que-eu-chuto Worldwide". Seu site na web, o popularíssimo "www.querbaterbate.com", recebia milhares, milhões de visitas todos os dias.

Jovens mulheres, com proverbial faro para os bons negócios, aderiram à nova onda. No início criaram empresas onde apenas mulheres surravam mulheres. Depois, de olho nos lucros, expandiram para homens batendo em mulheres e mulheres espancando homens. Note-se que estas últimas atividades ganhavam contornos nitidamente erotizantes, de modo que foram pouco a pouco acrescentando fetiches,  introduzindo sons e pedidos, do tipo: "Bate mais, paizinho..." ou "Vem, seu filho da puta..."
  
Mas a inveja é o que mais atrapalha a vida dos verdadeiros empreendedores. Gente sem princípios correram atrás do que julgavam ser uma atividade simples e lucrativa. Em pouco tempo, metade da população estava disposta a apanhar por alguns míseros trocados. Infelizmente, a outra metade não queria pagar para bater. Daí surgiram as promoções, liquidações e sales, tais como a "Semana do Bate-Grátis" ou a novidade: "Você nos cobre de porrada e nós cobrimos qualquer oferta da concorrência". 
Foi durante uma dessas promoções enlouquecidas que um gringo de renome internacional desceu no aeroporto da cidade e disparou: "Esta povo ser o mais sado-masoquista do planeta". E a fama correu mundo...
Felizmente, nessa época, a "Deixa-que-eu-chuto" tinha feito de Mané dos Anjos um próspero capitalista, com investimentos diversificados na Bolsa de Valores, Títulos da Dívida Pública e do Tesouro Direto, entre muitos outros. Amigo do presidente do BC, dizem que chegou a participar como conselheiro na campanha eleitoral de uma candidata que adorava bater em todo mundo.  
Por que o chamaram? Que experiência tinha ele na política?
Pense bem, Mané dos Anjos ganhou a vida apanhando. E não é isso que o povo quer, não é disso que o povo gosta? 
Agora, quando mais uma eleição se aproxima, com candidato preso e comitê de direitos humanos da ONU soltando o verbo pra soltar o preso, Mané dos Anjos está novamente à disposição de políticos e apolíticos, oferecendo consultoria e apostando que doravante tudo irá mudar, mas, como dizia Tomazi di Lampedusa, para continuar no mesmo. Sua mais nova promoção: “Seguindo minhas orientações, garanto uma surra de votos, mas se o candidato não for eleito, terá direito a três (03) surras, aplicadas sem piedade neste humilde consultor.” Alguém se aventura?

segunda-feira, 16 de julho de 2018

PIPOCA

Fn

Faz tempo que o tempo voa, já voava muito antes de inventarem o avião. Faz tempo que eu ouço você dizer que não me deve nada, assim como eu também não te devo nada, não tenho o direito, você diz, de ficar te acusando só porque passou a vida inteira atrasando meu lado, tudo tem seu tempo, eu bem que poderia perguntar, deixou por quê? Por que deixou? O tempo voa, nem pense em pará-lo.
Tudo tem seu preço, essa é uma outra verdade, e quanto mais rápido as coisas passam, nem que seja pela minha cabeça, menos deveriam valer, certo? Mas não é bem assim, quanto vale um sorriso que logo se desmancha? Quanto vale a inocência de quem pergunta, o que foi?, já sabendo de tudo que está se passando, e sabe desde a mais tenra idade. Tudo tem seu preço, mas certas coisas ninguém sabe como vender.
E a ilusão? Já pensou quantas vezes você se iludiu sem se dar conta? A  conversa que esticou só pra ouvir uma opinião diferente da sua, conversa (aqui entra como “mentira”), o que você queria mesmo estava lá dentro, encoberto por camadas e mais camadas de ingenuidades falsas, ilusórias, vamos dizer assim, desculpas esfarrapadas que a sua distraída mente aceitava como verdadeiras. 
Não foi culpa sua? Claro que não, culpa é outra palavra que deveríamos subtrair de nossos dicionários, todo mundo sente um pouco, funciona como um freio, um bridão na boca do recém-domado, mas quem menos sente o puxão nem sempre é o mais dócil, pelo contrário. O foco da ruindade estava lá dentro, se fazendo de bonzinho, o bom ladrão é aquele que tem cara de honesto e assiste com Pilatos à morte de Cristo, sem mover um músculo sequer de sua horrenda face, ninguém percebe a torpeza em sua forma bruta.  
Não deixar o tempo passar, mas nem pensar em detê-lo. Equilibro-me nessa corda bamba, esticada entre duas torres que já foram ao chão. Uma hora você é uma coisa; alguns segundinhos antes você já será outra. Ninguém mais domina o tempo: é a revolta das revoltas. O que você tem com isso? Cuidado, talvez seja acusada de ser uma das líderes desta rebelião dos segundos. 
(Atendendo a pedidos, aí vai a bula: Por que PIPOCA? Ideias assim ficam pulando dentro da minha cabeça, igual ao milho quando estoura na panela destampada. Por que destampada? Aí você já está passando dos limites... )